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Rastreamento e considerações sobre a conduta terapêutica na dor neuropática em pacientes adultos com doença falciforme

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS:

Dentre as alterações hereditárias, a doença falciforme é considerada a mais comum no Brasil. A dor crônica decorrente de suas complicações ainda é mal compreendida, inadequadamente descrita e pouco pesquisada. O presente estudo teve como finalidade caracterizar a dor crônica em indivíduos com doença falciforme, avaliar o seu tratamento e discutir a importância de seu estudo como uma doença em si.

METODOS:

Estudo transversal, baseado na análise comparativa entre duas associações de indivíduos acometidos pela doença falciforme, com sede no Brasil e na França. Foi aplicado o questionário Pain Detect para avaliação da dor neuropática e a Odds Ratio para avaliar a intensidade de associação entre o uso de opioides e a recorrência de crises álgicas de cunho crônico.

RESULTADOS:

O questionário Pain Detect apontou que no Brasil 55% de pacientes da doença calciforme apresentam componente neuropático provável, 23% negativo e 22% incerto. Na França, os resultaram foram de 51% para componente provável, 29% negativo e 20% incerto. Dos acometidos pela doença, 100% relataram dores constantes, sendo que fizeram uso frequente de opioides 62% no Brasil e 32% na França. O cálculo do Odds Ratio apontou os seguintes resultados: OR 15,14 (IC 95% = 4,777- 41,4, p < 0,0001) no Brasil; e OR 7,5 (IC 95% = 2,121- 25,74, p = 0,0013) na França.

CONCLUSÃO:

Embora haja uma crença de que a dor na doença falciforme seja primariamente relacionada à lesão tecidual a nível somático e visceral após os eventos vasoclusivos, o estudo apontou evidências emergentes de processos neuropáticos envolvidos. Assim, deve haver uma preocupação quanto ao manejo da dor crônica e em especial à dependência química pelos opioides no Brasil.

Descritores:
Anemia falciforme; Dor crônica; Opioides

ABSTRACT

BACKGROUND AND OBJECTIVES:

Sickle cell disease is considered the most common hereditary disorder in Brazil. The chronic pain resulting from some complications of sickle cell disease is still poorly understood, inadequately described, and under-researched. This study aimed to characterize chronic pain in individuals with sickle cell disease, evaluate its treatment, and discuss the importance of studying it as a distinct pathology.

METHODS:

A cross-sectional study based on comparative analysis between two associations of sickle cell disease patients, one in Brazil and the other in France. The Pain Detect Questionnaire was used to assess neuropathic pain, and Odds Ratio was used to evaluate the strength of the association between opioid use and the recurrence of chronic painful crises.

RESULTS:

In Brazil, the Pain Detect questionnaire revealed that 55% of patients had a probable neuropathic component, 23% negative, and 22% uncertain. In France, the application resulted in 51% for probable presence, 29% for negative, and 20% for uncertain. All patients reported constant pain. As for the frequent use of opioids, the results were 62% in Brazil and 32% in France. The Odds Ratio calculation results were: OR 15.14 (95% CI = 4.777- 41.4, p < 0.0001) in Brazil; and OR 7.5 (95% CI = 2.121- 25.74, p = 0.0013) in France.

CONCLUSION:

While it is commonly believed that pain in sickle cell disease is primarily related to somatic and visceral tissue damage after vaso-occlusive events, this study indicated emerging evidence of neuropathic processes involved. Thus, there should be a significant concern about the management of chronic pain and particularly opioid dependence in Brazil.

Keywords:
Chronic pain; Opioid; Sickle cell

DESTAQUES

Foram selecionados pacientes de doença falciforme de dois centros de tratamento sediados nos países França e Brasil.

Avaliou-se a presença de dor neuropática e relação entre uso de opioides e crises álgicas crônicas

Há evidências de processos neuropáticos associados e preocupação quanto ao manejo da dor crônica no Brasil.

INTRODUÇÃO

A doença falciforme (DF) é a doença hereditária monogênica considerada a mais comum no Brasil. Entre os anos de 2014 e 2020, o Programa Nacional de Triagem Neonatal diagnosticou uma média anual de 1.087 novos casos de crianças com D F, o que indica uma incidência de 3,78 a cada 10 mil nascidos vivos. Estimativas atuais reportam entre 60 mil e 100 mil pacientes com DF no País11 Governo Federal. Governo Federal reforça necessidade do diagnóstico precoce da Doença Falciforme [internet]. Ministério da Saúde. 2022. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2022/junho/governo-federal-reforca-necessidade-do-diagnostico-precoce-da-doenca-falciforme
https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/...
,22 Teixeira PMS. Hemoglobinopatias: clínica, diagnóstico e terapêutica. Universiade de Coimbra; 2014.,33 Miranda FJ, Matalobos ARL. Prevalência da anemia falciforme em crianças no Brasil. Braz J Health Rev. 2021;4(6):26903-8.. Em termos mundiais, estima-se que 5% da população tenha a doença e que uma média de 275 mil novos pacientes de DF nascem a cada ano44 Amparo Sobrinho LM. A Experiência da dor pelos pacientes com doença falciforme. Universidade Federal da Bahia; 2012.,55 Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo. Linha de cuidados em doença falciforme na atenção básica [internet]. São Paulo.2021]. Disponível em https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/Manual_Anemia_Falciforme3_14_5_2021.pdf.
https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/...
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Considerada uma das doenças mais antigas da humanidade, a hemoglobina falciforme (HbS) é resultado de uma mutação de ponto na cadeia polipeptídica beta da globina, em que a substituição do ácido glutâmico por uma valina é responsável pelas mudanças eletroquímicas que dão origem a uma célula sanguínea morfologicamente alterada, denominada drepanócito. O termo “doença falciforme” inclui-se em uma família de alterações hematológicas em que a forma heterozigótica é representada pela associação de uma HbS com outras hemoglobinas alternativas, enquanto a anemia falciforme (AF - HbSS) é sua representante homozigótica e mais sintomática66 Brasil. Ministério da Saúde. Doença Falciforme: condutas básicas para tratamento. Brasília: Ministério da Saúde. 2012.. Tendo sido foco de estudos antropológicos associados a análises biomoleculares, hoje se acredita que o alelo anormal para a síntese da HbS tenha surgido nos períodos paleolítico e mesolítico, aproximadamente há 50 ou 100 mil anos atrás, na região centro-oeste da África, leste do continente asiático e na Índia11 Governo Federal. Governo Federal reforça necessidade do diagnóstico precoce da Doença Falciforme [internet]. Ministério da Saúde. 2022. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2022/junho/governo-federal-reforca-necessidade-do-diagnostico-precoce-da-doenca-falciforme
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No entanto, a primeira descrição na literatura de um eritrócito fisicamente diferente aconteceu somente em 1910, quando o cardiologista James Herrick relatou o caso de um jovem paciente caribenho, Walter Noel, atendido no Presbyterian Hospital de Chicago, com queixas múltiplas, como dispneia e palpitações22 Teixeira PMS. Hemoglobinopatias: clínica, diagnóstico e terapêutica. Universiade de Coimbra; 2014.. As complicações clínicas dessa alteração têm níveis graduados de complexidade, variando continuamente entre períodos de bem-estar e períodos de urgência e emergência. Dos muitos sintomas comumente observados, a dor é o mais frequente e estressante. Segundo autores77 Smith WR, Scherer M. Sickle-cell pain: advances in epidemiology and etiology. Hematology Am Soc Hematol Educ Program. 2010;2010:409-15., uma grande porcentagem de adultos pacientes com DF relata dor em 95% dos dias, sugerindo que existe um manejo inadequado da dor crônica (DC) e denotando grandes preocupações quanto a utilização inapropriada dos recursos terapêuticos, em especial a dependência química pelos opioides.

Pacientes que têm sido tratados com opioides de maneira diária podem experimentar sensação de dor não controlada e episódios de abstinência77 Smith WR, Scherer M. Sickle-cell pain: advances in epidemiology and etiology. Hematology Am Soc Hematol Educ Program. 2010;2010:409-15.. Dados da International Association for the Study of Pain (IASP) afirmam que a DC associada à DF ainda é mal compreendida e diferentes estudos apontam que suas características são fracamente descritas e pesquisadas88 IASP. Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos. Seatle: IASP; 2010. 401p.. Considerando que a existência dos fármacos que atualmente compõem a rotina do tratamento da DF e acarretaram o aumento da expectativa de vida dos seus pacientes é uma realidade bastante recente, uma pesquisa99 Taylor LE, Stotts NA, Humphreys J, Treadwell MJ, Miaskowski C. A review of the literature on the multiple dimensions of chronic pain in adults with sickle cell disease. J Pain Symptom Manage. 2010;40(3):416-35. destaca que o estudo da DC nesses indivíduos é pouco enfatizado, justificando o grande interesse dos pesquisadores pelo estudo da dor aguda da DF, especialmente em crianças. Além disso, diversos autores relatam a escassez de referencias atuais e pesquisas relevantes sobre o tratamento da DC em adultos com DF1010 Gomes BC, Mendonça RMH, Verissimo MPA. O uso de canabinoides no tratamento da dor em pacientes com Doença Falciforme. Int J Health Manag. 2022;8(1)..

Dessa forma, o presente estudo teve como finalidade caracterizar a DC em pacientes com DF e avaliar a efetividade dos tratamentos oferecidos, de modo a levantar não somente as práticas aplicadas hoje na clínica e seus possíveis efeitos adversos, mas também discutir a importância da ênfase do estudo da DC como uma doença em si, mesmo quando associada a uma doença crônica como a DF.

MÉTODOS

Para a realização do estudo, foram selecionadas as duas maiores associações de pacientes com DF localizadas no Brasil e na França. Suas abrangências vão além das cidades onde estão sediadas, englobando membros domiciliados em outras localidades. Trata-se de um estudo analítico, do tipo comparativo, que utilizou um delineamento transversal, considerando um ponto único no tempo. Uma amostra representativa dos membros vinculados às duas associações foi selecionada aleatoriamente, atingindo um n amostral de 200 participantes no total.

Foram incluídos no estudo membros maiores de 14 anos acometidos pela DF, nos quais aplicou-se o questionário validado Pain Detect Questionnaire, adaptado para a plataforma eletrônica Google Forms, e um formulário de identificação com perguntas acerca do tratamento. Foram desconsiderados os questionários respondidos de forma incompleta e membros que não assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Contabilizou-se os relatos de crises álgicas no período de um mês antes da aplicação dos questionários e os relatos positivos e negativos levados para análise estatística por meio da Odds Ratio - com intervalo de confiança de 95% - para cálculo da intensidade de associação entre o uso de opioides e a recorrência de crises álgicas de cunho crônico. Foram excluídos desse cálculo indivíduos cujas crises de dor necessitaram de hemotransfusão por se tratar de crises de dor aguda, vasoclusivas, decorrentes da doença de base.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa no Brasil, sob número CAAE 67486617.8.0000.0093 e recebeu avaliação positiva do Comitê de Proteção à Pessoa, na Europa.

Análise estatística

Os resultados do cálculo da Odds Ratio foram tratados utilizando o software GraphPad Prism versão 7, considerando um intervalo de confiança de 95%.

RESULTADOS

O questionário Pain Detect apontou que no Brasil 55% dos indivíduos afetados apresentam um componente neuropático provável, enquanto 23% apresentaram resultados negativos e 22% incertos. Na França, a aplicação do mesmo questionário resultou em 51% de positividade, 29% de negatividade e 20% de incerteza (Figura 1). Dos pacientes estudados, 100% relataram dores constantes, sendo que 62% no Brasil e 32% na França fizeram uso frequente de opioides. O cálculo do Odds Ratio apontou os seguintes resultados: OR 15,14 (IC 95% = 4,777- 41,4, p < 0,0001) no Brasil; e OR 7,5 (IC 95% = 2,121- 25,74, p = 0,0013) na França (Tabela 1).

Figura 1
Resultados do Pain Detect

Tabela 1
Valores da razão de Odds Ratio no Brasil e na França

DISCUSSÃO

As manifestações clínicas associadas à DF têm níveis diversificados de complexidade, variando cotidianamente entre períodos de bem-estar e períodos de urgência e emergência. A dor aguda, causada pelas crises vasoclusivas da D F, é a principal responsável pela internação de pacientes. A persistência desse estímulo na DF ativa mecanismos secundários que dão origem a diferentes tipos de dores crônicas. Dores de diferentes tipos já foram identificadas em pacientes de DF: dor aguda, causada pelo bloqueio do fluxo sanguíneo e de outras causas; DC da lesão óssea e de outras causas, e dor neuropática crônica (DN)1111 Antunes FD. Detecção de dor neuropática em pacientes com doença falciforme através de questionário de avaliação. Universidade Federal de Sergipe; 2017.. A DN é uma síndrome dolorosa, geralmente crônica, em que o mecanismo responsável pelo aparecimento da dor é encontrado em algum local das vias nociceptivas, causando uma mudança no sistema nervoso com consequente hipersensibilidade, seja na área da lesão ou no tecido circundante, sem inicialmente estimular os nociceptores, contrariamente ao que acontece com a dor nociceptiva.

Assim, a DN é descrita pela IASP como consequência de uma lesão ou doença no sistema somatossensorial, que pode ser classificada como central ou periférica – dependendo do local no sistema nervoso acometido. A DN pode ainda ser identificada como possível, provável e definitiva. Os critérios diagnósticos para esta classificação incluem: (I) dor com distribuição anatômica compatível; (II) história sugestiva de lesão ou doença que afete o sistema somatossensitivo; (III) distribuição anatômica compatível em pelo menos um teste confirmatório e (IV) confirmação de doença ou lesão em pelo menos um teste confirmatório. A DN é definitiva quando responde aos critérios de I a IV; provável quando verificados critérios I e II com confirmação de III ou IV, e possível quando apresentados os critérios I e II, porém, sem confirmação de III ou IV.

Por possuir diversas etiologias e mecanismos fisiopatológicos que ainda não estão bem compreendidos, a DN é considerada uma doença complexa e, seu diagnóstico, um grande desafio clínico, pois nem sempre todos os sintomas estão bem definidos1212 Posso IR, Grossmann E, Fonseca PRB et Al. Tratado de Dor: publicação da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor. Rio de janeiro: Atheneu, 2017.,1313 Posso IP, Palmeira CC, Vieira EB. Epidemiology of neuropathic pain. Rev Dor. 2016;17(1):11-4., ainda que não existam descritores verbais para definição dos sintomas. Os indivíduos com DF se queixam de queimação, sensação de choque, sensação de frio doloroso, picada, formigamento e comichões. Esses termos são características da DN, assim como a presença de alodínia e hiperalgesia1313 Posso IP, Palmeira CC, Vieira EB. Epidemiology of neuropathic pain. Rev Dor. 2016;17(1):11-4.. Embora o diagnóstico de DN seja eminentemente clínico e se baseie no exame físico e anamnese criteriosa, alguns instrumentos têm sido propostos para auxiliar a identificação dessa doença. Uma ferramenta simples de triagem, com valor preditivo positivo, sensibilidade e especificidade próximas de 80%, é o questionário Pain Detect, usado nesta pesquisa para diferenciar DN de dor não neuropática em pacientes de DF. Inicialmente desenvolvido para detecção de DN em pacientes com lombalgia, o Pain Detect foi validado em pacientes de DF1111 Antunes FD. Detecção de dor neuropática em pacientes com doença falciforme através de questionário de avaliação. Universidade Federal de Sergipe; 2017..

Um estudo realizado no estado de Wisconsin/EUA com indivíduos com DF utilizando o Pain Detect como ferramenta de avaliação apontou que mais de 40% dos pacientes apresentaram escore compatível com DN, valor semelhante ao obtido neste estudo para os membros das duas associações1414 Brandow AM, Farley RA, Panepinto JA. Neuropathic pain in patients with sickle cell disease. Pediatr Blood Cancer. 2014;61(3):512-7.. O relato de dores constantes pelos entrevistados em ambas as associações, com aumento de frequência e intensidade, conforme o avanço da idade, foi condizente com a hipótese levantada sobre a presença de dores crônicas nesse grupo. Porém, a diferença significativa no que diz respeito ao relato de uso do sulfato de morfina (62% no Brasil e 32% na França), apesar da similaridade dos protocolos de tratamento das crises álgicas, aponta para uma avaliação errônea e um manejo inadequado da DC no Brasil1515 France. Haute autorité de santé. Pirse em Charge de la drépanocytose chez lénfant et ládolescent. France: HAS.2005..

O manual do Ministério da Saúde de condutas básicas relacionadas à DF aponta que as crises álgicas devem ser avaliadas, suas causas desencadeantes pesquisadas, assim como os fatores de risco estudados e a investigação laboratorial concluída. Os analgésicos de primeira escolha são a dipirona, diclofenaco e codeína, em função da graduação da dor na escala analógica. Pacientes cuja dor não é atenuada após 6 horas da instalação da terapia devem ser hospitalizados e tratados de acordo com o protocolo de internação, em que os opioides fortes se encontram no último degrau da escala analgésica66 Brasil. Ministério da Saúde. Doença Falciforme: condutas básicas para tratamento. Brasília: Ministério da Saúde. 2012. (Tabela 2).

Tabela 2
Protocolo de tratamento das crises álgicas da doença falciforme

Os opioides têm por mecanismo de ação principal o estímulo de receptores específicos localizados no sistema nervoso central e periférico, os quais são classificados em receptores mu, delta e kappa, entretanto acredita-se que estes não sejam os únicos alvos existentes. Trabalhos demonstram que um alvo possível é o receptor N-metil-D-aspartato (NMDA), que tem como principal neurotransmissor excitatório o glutamato, o qual faz parte da propagação e sensibilização da dor a nível central. O uso de opioides a curto e longo prazo aumenta as atividades desse receptor ao interferir diretamente na atividade regulatória do glutamato1616 Morris O, Crowley L, Mailis A. Hiperalgesia Induzida por opioides. Anaesthesia tutorial of week [internet].2020.Disponível em https://www.sbahq.org/wpcontent/uploads/2022/12/Hiperalgesia-Induzida-por-Opioides.pdf.
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, promovendo a exacerbação da dor. Não há dúvida quanto à eficácia dos opioides para analgesia da dor aguda decorrente da doença de base, entretanto existem controvérsias sobre o uso desses fármacos para o controle da DC da DF1111 Antunes FD. Detecção de dor neuropática em pacientes com doença falciforme através de questionário de avaliação. Universidade Federal de Sergipe; 2017.. O cálculo da Odds Ratio, associando o uso frequente de sulfato de morfina e recorrência de crises álgicas, aponta para uma grande preocupação quanto à utilização inapropriada dos recursos terapêuticos, em especial a dependência química pelos opioides. A sensação de dor não controlada e os episódios de abstinência são condições frequentes em pacientes tratados com opioides diariamente, assim como a possibilidade de desenvolverem hiperalgesia induzida pelo fármaco, com expansão do campo receptivo, redução no limiar da dor e aumento da resposta ao estímulo nocivo1717 Campbell CM, Moscou-Jackson G, Carroll CP, Kiley K, Haywood C Jr, Lanzkron S, Hand M, Edwards RR, Haythornthwaite JA. An evaluation of central sensitization in patients with sickle cell disease. J Pain. 2016;17(5):617-27.. Múltiplos fatores parecem estar associados ao desenvolvimento da hiperalgesia, como a ativação de receptores NMDA e a modificação das células da glia. A dificuldade de controle da DC, exacerbando a intensidade e aumentando a frequência das crises álgicas é proveniente desses mecanismos1818 Leal PC, Clivatti J, Garcia JBS, Sakata RK. Hiperalgesia induzida por opioides. Rev Bras Anestesiol. 2010;60(6):639-47.. Nesse ponto, é importante lembrar que a DF é a doença de maior prevalência entre a população afrodescendente, grupo documentadamente atingido pela discriminação e vítima de exclusões históricas, que ainda sofre diretamente e em todas as esferas sociais os impactos do racismo e do preconceito44 Amparo Sobrinho LM. A Experiência da dor pelos pacientes com doença falciforme. Universidade Federal da Bahia; 2012..

A literatura traz diferentes estudos que demonstram despreparo dos diversos profissionais da área da saúde no que diz respeito à DF. O tratamento dos episódios álgicos não sofre alterações substanciais há décadas e se baseia no alívio dos eventos agudos, sem utilização de estratégias de abordagem da DC. Tal como destacado pelo estudo1919 Naoum PC. Interferentes eritrocitários e ambientais na anemia falciforme. 2000;22(1):5-22., a produção científica não se silenciou sobre a célula falciforme, pois ela vem sendo amplamente estudada, mas o silêncio e a omissão sobre as pessoas acometidas pela doença e o sofrimento associado é recorrente. Assim, mais estudos focados na DC da DF são necessários para fazer avançar a compreensão e os métodos de tratamento para que os pacientes possam melhorar o seu potencial psicossocial e não continuem debilitados pela dor2020 Zoheiry N, Alkokani M, Ward R, Mailis A. Characterization of Chronic Pain and Opioid Usage in Adult Sickle Cell Disease Patients Referred to a Comprehensive Pain Clinic. Pain Med. 2016;17(11):2145-46.. Enquanto se avalia que a dor na DF é primariamente relacionada à lesão tecidual a nível somático e visceral após os eventos vasoclusivos, o presente estudo apontou uma evidência emergente de processos neuropáticos envolvidos e uma preocupação relevante quanto ao manejo da DC, em especial a dependência química pelos opioides no Brasil.

As dificuldades diagnósticas para distinguir os diferentes tipos de dor que afetam indivíduos com DF resultam na utilização inadequada dos recursos terapêuticos e maior sofrimento a esses indivíduos, pois terapias distintas são necessárias para o tratamento da dor nociceptiva, mas são pouco efetivas para a DN. Dessa forma, o presente estudo aponta a importância da ênfase do tratamento da DC como uma doença em si, mesmo quando associada a uma doença de base, como a DF.

Considerando a realidade epidemiológica da doença e diante dos resultados do presente trabalho, que traça comparações com um país europeu, pode-se perceber que no Brasil os indivíduos com DF também sofrem um tipo importante de dor, que não é resultado das crises de falcização eritrocitária, nem dos diferentes mecanismos de sensibilização central, mas sim da histórica invisibilidade da doença, do preconceito e do desconhecimento por parte dos profissionais da saúde.

CONCLUSÃO

Neste estudo foi possível evidenciar que há um componente neuropático na dor associada à DF, tanto no Brasil quanto na França. Além disso, a frequência do uso de opioides no Brasil aponta uma preocupação significativa em relação ao manejo da dor nos indivíduos com DF. As dificuldades diagnósticas na caracterização dos tipos de dor contribuem para o uso inadequado dos recursos terapêuticos e para o aumento do sofrimento nesses indivíduos. Os presentes achados destacam a importância da identificação e compreensão da DC na DF e a disparidade entre os resultados encontrados em ambos os países no que diz respeito ao uso de opioides, indicando a necessidade emergente de um tratamento adequado que considere todas as complexidades relacionadas à DF.

  • Fontes de fomento: não há.

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Editado por

Editor associado responsável: Anita Perpetua Carvalho Rocha de Castro https://orcid.org/0000-0002-1451-8164

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    07 Out 2023
  • Aceito
    22 Fev 2024
Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor Av. Conselheiro Rodrigues Alves, 937 Cj2 - Vila Mariana, CEP: 04014-012, São Paulo, SP - Brasil, Telefones: , (55) 11 5904-2881/3959 - São Paulo - SP - Brazil
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